terça-feira, 15 de janeiro de 2008

Sonhos de uma noite de outono

"Agora eu era o herói e meu cavalo só falava inglês a noiva do caubói era você além das outras três e você fugiu no mundo sem me avisar e agora eu era um louco a perguntar o que é que a vida vai fazer de mim..."
Num surto nervoso daqueles meio neuróticos do meio da noite, quando somos acordados sabe-se porque e levados a pensar nas coisas mais malucas possíveis, ela cantou. Cantou assim mesmo mesmo, sem ponto nem vírgula, e já tinha esquecido da métrica e do ritmo. Mas lembrou-se dos sonhos, lembrou-se da vida que tinha planejado. Lembrou-se que, quando tinha entrado na faculdade, sonhara em ser uma grande cirurgiã, queria poder salvar as pessoas que mais precisavam. Sonhara que seria a melhor, que teria uma carreira invejável. Olhou pro lado. Seu marido roncava sonaramente, atrapalhando até mesmo os pensamentos dela. Resolveu ir para sala.
No caminho, notou que a porta do quarto do bebê estava aberta, e ele começou a chorar. Sentira seu cheiro. Acalentou-o, e ouviu um resmungo distante. Devia ser o marido que foi acordado pelo choro, mas não se levantou.
Ao adormecer, o bebê suspirou profundamente. Ela se lembrou da sua infância, e depois dos conselhos da sua mãe: "Filha, toda mulher é força. Temos que ser fortes para conseguirmos aquilo que desejamos. Nunca abra mão de nada do que você deseja pelo desejo dos outros, mesmo que seja a pessoa que você mais ama na vida. Porque um dia você vai olhar pra trás e se arrepender de tudo que não fez."
Ela estava certa, afinal. Por amor, Roberta abriu mão de terminar sua faculdade, e ainda por amor casou e logo teve seu primeiro filho. Parou de trabalhar por amor ao filho, e logo vieram mais dois. Seu marido conseguira alcançar uma posição de prestígio no trabalho, e eles tinham tudo o que queriam, dinheiro nunca foi o problema.
Agora, aos 40, sentada próxima ao berço do seu quarto filho, ela se lembra, amargurada, que sempre fora a primeira da turma, e que, quando contou a seu professor que abandonaria o curso para se casar, ele disse: "a medicina acaba de perder uma grande profissional, e o mundo, uma grande mulher".
Ela se perdeu em seus devaneios, e acabou dormindo no sofá. De manhã, aos berros, seu marido reclamou que aquela camisa não estava passada. E ela respondeu que iria voltar a trabalhar.

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"Depois de algum tempo você aprende a diferença, a sutil diferença, entre dar a mão e acorrentar uma alma. (...)
E começa a aprender que beijos não são contratos e presentes não são promessas."